Uma agricultura que, historicamente, produziu às custas de mão de obra escrava. Essa é a agricultura brasileira, que hoje quer se chamar de agronegócio, sinônimo de modernidade e alta produção. Trata-se, na verdade, de uma agricultura capitalista, “que agora aparece com essa cara de agronegócio”, uma grande falácia, esclarece o geógrafo Ariovaldo Umbelino, na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line. Para piorar a situação, o Estado brasileiro não fiscaliza e não aplica as leis como deveria, o que gera um sentimento de impunidade e proteção.
Analisando a relação entre a violência, a concentração de terras e o agronegócio, Umbelino explicou que essa violência é estrutural, uma vez que reside na origem da propriedade privada da terra no Brasil. Para se ter uma ideia, cerca de 60% dos imóveis rurais não possuem titulação de fato. As pessoas cercam a terra, começam (ou não) a produzir e se dizem donas. Muitos proprietários fazem contratos de compra e venda não reconhecidos em cartórios e, por vezes, estão ocupando terras da união, como foi o caso da Cutrale. Em primeiro lugar, a terra deve cumprir sua função social, conforme estipula a Constituição brasileira. E isso acontece, menciona o geógrafo, quando “o cultivo respeita a legislação trabalhista e ambiental e quando nela não se cultivam drogas psicotrópicas”.
Outro tema da conversa com Umbelino foi a questão da produtividade das terras brasileiras. Segundo o pesquisador, “é uma mentira continuar dizendo que a terra no Brasil é produtiva. Para começar a desvelar essa mentira, é preciso lembrar que, se somarmos toda a área com plantio agrícola, ela não chega a 70 milhões de hectares. O Brasil tem 850 milhões de hectares! O Incra sabe disso e não faz nada. A justiça sabe disso e não faz nada”. Na Amazônia, por exemplo, há o caso de uma pessoa que é proprietária de 5 milhões de hectares. “Em país nenhum do mundo existe esse ‘livre arbítrio’ da terra”. E completa: “Parece que vivemos num país sem lei. É preciso ter clareza de que não haverá paz no campo no Brasil enquanto o Estado brasileiro, através dos seus órgãos competentes, não assumir o controle do território e o controle da propriedade privada da terra”.
Ariovaldo Umbelino é graduado em Geografia, pela Universidade de São Paulo, onde também realizou o doutorado em Geografia Humana e obteve o título de Livre Docência. É professor e chefe do departamento de Geografia da USP, autor de A geografia das lutas no campo (São Paulo: Contexto, 1996) e Modo Capitalista de produção, agricultura e Reforma Agrária (São Paulo: FFLCU/Labur Edições, 2007).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a sua avaliação sobre a violência no campo no Brasil? Como as elites respondem atualmente às reivindicações dos movimentos populares por terra?
Ariovaldo Umbelino – A respeito da violência é preciso afirmar que ela é estrutural, ou seja, está na origem da formação da propriedade privada da terra. Como boa parte dos latifundiários brasileiros não tem documentos legais que os habilitem a se colocarem numa sociedade democrática como proprietários de fato da terra, usam da violência como forma de intimidação e pressão política sobre o Estado para que este não crie as leis e não as apliquem. Nos estudos que faço através de um projeto financiado pelo CNPq, chamado Atlas da Terra Brasil, mostramos, com dados baseados no Incra, que perto de 60% dos imóveis existentes aqui não possuem titulação de fato. Isso quer dizer que, se subtraio da área total do Brasil a área declarada do cadastro do Incra, que é um cadastro declaratório similar ao imposto de renda (o Incra não faz averiguação se os documentos de uma pessoa que preenche o cadastro possui, de fato, os documentos legais que os habilitem), quase 60% das terras do Brasil irão aparecer como sem proprietários. Assim, a princípio são terras públicas que deveriam, pela legislação brasileira, serem destinadas à reforma agrária, demarcação de terras de indígenas e quilombolas ou à constituição de unidades de conservação ambiental. No entanto, essas terras estão cercadas e o Estado nada faz. É aí que reside a razão estrutural da violência na terra. Isso é histórico, não é de hoje. As pessoas cercam áreas e, pela força, criam uma situação em que elas estão lá de forma legalizada, quando na verdade isso não está correto. O que estou falando é tão verdadeiro que, se olharmos no cadastro do Incra, mesmo aquele cadastro declaratório, uma parte dos que lá declaram dizem que não tem documentos da terra. Então, na realidade, o próprio Incra, que é o órgão máximo de controle da propriedade privada da terra no Brasil, sabe que uma parte daqueles que se dizem proprietários não são possuidores dos títulos de direito.
| “O Estado brasileiro, infelizmente, não aplica as leis, não fiscaliza como deveria, ao mesmo tempo em que a justiça, quando detecta uma infração, não pune exemplarmente” |
Os movimentos sociais passaram a fazer a ocupação de terras como instrumento político para obrigar os que se dizem proprietários a mostrarem os documentos e fazer com que o Estado averigúe se esses documentos existem mesmo. Fazer a reforma agrária é uma obrigação, um dever do Estado.
IHU On-Line – Que conexões podem ser estabelecidas entre a concentração de terras, o trabalho escravo no campo e o agronegócio em nosso país?
Ariovaldo Umbelino – Não podemos pensar que o agronegócio que se faz no Brasil é diferente do que se pratica no restante do mundo. Temos uma agricultura capitalista que agora aparece com essa cara de agronegócio. Nossa agricultura, historicamente, utilizou-se do trabalho escravo. Ela começou com a escravidão e, no imaginário do capitalista brasileiro, paira a ideia de que se pode abusar dos trabalhadores. Isso faz parte do que chamamos de imaginário coletivo do que esses agricultores praticam.
Não existe agricultor capitalista moderno e agricultor capitalista atrasado. Ambos usam instrumentos que oprimem. O Estado brasileiro, infelizmente, não aplica as leis, não fiscaliza como deveria, ao mesmo tempo em que a justiça, quando detecta uma infração, não pune exemplarmente. Então, por se sentirem impunes e protegidos pelo Estado, esses agricultores inventaram a falácia de que o agronegócio é moderno e não utiliza o trabalho escravo.
Álcool, sangue e suor
A maior parte do trabalho escravo ocorre nas usinas de açúcar. E se tenta vender uma imagem no exterior de que o álcool no Brasil é puro. Puro? Ele é misturado com o sangue dos trabalhadores que cortam cana! Outra parte expressiva do trabalho escravo no Brasil aparece na coleta das raízes nas áreas de produção de grãos no cerrado. Esse é o chamado agronegócio moderno. Esse trabalho escravo é estrutural como a violência que cerca a questão da terra. Eles fazem parte da gênese da agricultura brasileira.
É preciso parar com essa campanha ideológica de que o agronegócio não usa trabalho escravo, que cumpre as leis brasileiras. Parte dos empresários do campo no Brasil até cumprem as leis, mas isso não vale para a totalidade. O mesmo se aplica ao setor industrial. Se não fosse assim, a Justiça do Trabalho não estaria abarrotada de ações movidas pelos trabalhadores. O descumprimento da legislação brasileira vem de muito tempo e está enraizado na mentalidade brasileira. Faz parte desse tipo de capitalismo que se desenvolveu no Brasil, que acha que pode atuar à revelia da lei.
| “Temos uma agricultura capitalista que agora aparece com essa cara de agronegócio. Nossa agricultura, historicamente, utilizou-se do trabalho escravo” |
IHU On-Line – Como podemos compreender esse paradoxo do Brasil ultramoderno com o Brasil que segue excluindo, estigmatizando e inclusiveassassinando as pessoas, como no caso de homens e mulheres camponeses?
Ariovaldo Umbelino – Seria paradoxal se essa atividade moderna não requeresse etapas do processo produtivo que ainda se valem fortemente do trabalhador manual. Na realidade o que os empresários do agronegócio e qualquer empresário brasileiro não querem é usar intensamente o trabalho humano. É exatamente por isso que o trabalho escravo aparece mais em região de florestas na etapa do desmatamento e na área de produção de grãos do cerrado na coleta de raízes, porque isso ainda não pode ser feito por máquina alguma. O paradoxo, portanto, é aparente, porque na realidade o processo produtivo deve ser olhado em sua totalidade, desde o preparo da terra até a colheita final. Algumas etapas estão fortemente mecanizadas, enquanto outras ainda demandam do braço humano para serem feitas.
IHU On-Line – Quais as principais violações à função social da terra?
Ariovaldo Umbelino – É preciso dizer que os órgãos do governo federal, sobretudo o Incra, responsável pela reforma agrária, deveriam fazê-la cotidianamente. É preciso chamar o Estado à responsabilidade, com seus representantes que estão no órgão competente para a distribuição de terras. É o caso do presidente do Incra, que deve fazer cumprir a função social da terra. Se o presidente do Incra não faz isso, cabe à sociedade civil reclamar à Promotoria Pública, ao Ministério Público, para que estes façam com que o presidente do Incra cumpra sua responsabilidade. Como nenhum desses caminhos legais é seguido, o que fazem os camponeses sem terra? Unem-se em movimentos sociais e ocupam as terras. Os movimentos sociais nascem dessa contradição entre a tarefa do Estado de fazer a reforma agrária e sua não realização. Ao mesmo tempo, se liga a isso o fato de que muitos dos que cercaram as terras não são, de direito, seus proprietários.
| “O Incra deve divulgar quais são as maiores propriedades no país. Ele é um órgão governamental, público, e esconde esse tipo de informação” |
IHU On-Line – Como o senhor avalia a questão trabalhista dentro do agronegócio?
Ariovaldo Umbelino – O caso mais gritante é aquele que ocorre no setor sucroenergético, de produção do álcool, que vive um processo forte de mecanização. No ano passado, cerca de 60% do processo de colheita da cana foi feito de forma mecanizada. É um setor que caminha nessa direção, diferente do setor de grãos, que já faz colheitas com máquinas há tempo. O que ocorre é uma pressão brutal por parte dos empresários para que os cortadores de cana aumentem a produtividade de trabalho manual. Isso quer dizer que esses trabalhadores devem aumentar a quantidade de cana cortada por dia. Essa quantia é expressa em toneladas. Na década de 1980 um trabalhador cortava de 4 a 6 toneladas de cana por dia, dependendo da produtividade do canavial. Na década de 1990 o trabalhador foi sendo pressionado a cortar algo em torno de 8 a 12 toneladas de cana por dia. Agora, a pressão é para que corte de 12 a 16 toneladas de cana a cada expediente. Isso exige um dispêndio descomunal de energia para o ser humano. Conforme estudos, a quantidade de energia despendida por um cortador de cana num dia equivale àquele gasto numa corrida de maratona, ou seja, 42 km por dia.
Isso é algo desumano e faz com que haja perdas absurdas de água, sais e outras substâncias importantes no corpo humano. Por isso, algumas usinas introduziram o uso de isotônicos para seus trabalhadores, a fim de melhorar seu rendimento no serviço. Estamos diante de uma situação cruel que mostra que o que de mais moderno existe na agricultura se assemelha à barbárie do século XIX. Nem os trabalhadores nas minas de carvão, na origem da Revolução Industrial na Inglaterra, foram submetidos a esse tipo de jornada de trabalho.
| “O agronegócio é hábil ideologicamente. Faz propaganda para enganar e encobrir que atua na ilegalidade” |
IHU On-Line – Qual é a sua avaliação a respeito do plebiscito sobre o limite da propriedade da terra que aconteceu em 2010? Que avanços efetivos trouxe essa mobilização e quais foram suas limitações?
Ariovaldo Umbelino – A campanha pelo limite da propriedade da terra no Brasil é uma decisão tomada de longa data, no Fórum Nacional de Luta pela Reforma Agrária e Dignidade e Justiça no Campo. O fórum é uma grande frente que inclui desde os movimentos sociais, as organizações sindicais e outras que interessaram a área rural brasileira. O plebiscito foi amplamente apoiado pela Igreja Católica através da Comissão Pastoral da Terra (CPT), sobretudo. No ano passado, o Fórum decidiu que, junto da campanha, que é de longo prazo, deveria realizar o plebiscito. Assim, na Semana da Pátria, junto do Grito dos Excluídos, foi efetuado o plebiscito. A ideia era chamar a atenção da sociedade brasileira de que atualmente a propriedade privada da terra em nosso país não tem limites. Se tomarmos o Estatuto da Terra de 1964, veremos que há uma limitação da propriedade. Com a Constituição de 1988, esse limite foi retirado. A rigor, no Brasil, pode-se chegar ao absurdo de uma pessoa adquirir todas as terras da Nação e estar amparada legalmente caso tenha os documentos. Isso é um completo absurdo no contexto de uma sociedade moderna e democrática. Em país nenhum do mundo existe esse “livre arbítrio” da terra.
Terra, propriedade sui generis
Em segundo lugar, a Constituição de 1988 e o Estatuto da Terra de 1964, feito pelos militares, dizem claramente que a terra não é igual a qualquer outro tipo de propriedade. Se eu tenho um automóvel, posso deixá-lo apodrecendo na garagem. Ninguém pode se intrometer nisso exceto se essa atitude gerar problemas de saúde pública. Isso quer dizer que eu tenho poder absoluto sobre tal bem. O direito de propriedade prevalece na sua plenitude e totalidade. Com a terra não ocorre isso. A Constituição diz claramente que a terra deve, em primeiro lugar, cumprir sua função social. Quando a terra cumpre sua função social? Quando é produtiva, quando o cultivo respeita a legislação trabalhista e ambiental e quando nela não se cultivam drogas psicotrópicas. A partir daí, temos exatamente a situação de cumprimento da função social da terra.
| “Em país nenhum do mundo existe esse 'livre arbítrio' da terra” |
Se uma propriedade é encontrada pelos fiscais do trabalho valendo-se de trabalho escravo, essa propriedade deveria ser imediatamente desapropriada para a reforma agrária, porque não cumpre sua função social. Quanto aos problemas ambientais, basta lembrarmos o que está ocorrendo na discussão das modificações do Código Florestal, quando querem abolir a preservação ambiental do Brasil em nome da destruição por um preço que não sabemos qual será.
Informações escondidas
A campanha pelo limite da propriedade tem o objetivo de colocar um parâmetro nesse tamanho que as propriedades podem ter em nosso país. Na Amazônia há senhores que possuem títulos de áreas com 5 milhões de hectares. No site de uma empresa de celulose há a informação de que ela tem 1,7 milhões de hectares de área. A sociedade e o Congresso precisam discutir isso. Não se quer impor nada, mas estabelecer o debate e propor o limite. Por isso é preciso vir a público o tamanho das propriedades. O Incra deve divulgar quais são as maiores propriedades no país. Ele é um órgão governamental, público, e esconde esse tipo de informação. Aliás, é bom que se diga que parte desses dados são escondidos dentro do próprio Incra. Só quem trabalha no setor de cadastro de imóveis rurais é que tem acesso a essas informações.
Por isso digo que a questão da propriedade privada da terra no Brasil não é completamente explicada à sociedade. E a sociedade precisa ter a consciência de que o fato de uma pessoa cercar a terra e falar que é sua, não quer dizer que isso esteja correto. É preciso provar de forma documental que aquela terra tem um título que foi emitido por um órgão competente. Muitas pessoas fazem uso dos contratos de compra e venda, instrumentos jurídicos assinados entre duas pessoas, e que só tem validade legal se forem convertidos numa escritura pública registrada em cartório de registro de imóveis. Fora isso, o contrato de compra e venda não dá direito a ninguém de um título de propriedade.
| “Algumas usinas introduziram o uso de isotônicos para seus trabalhadores, a fim de melhorar seu rendimento no serviço. Estamos diante de uma situação cruel que mostra que o que de mais moderno existe na agricultura se assemelha à barbárie do século XIX” |
Pés de barro
Existe uma máxima, um imaginário social, de que se você cercou um pedaço de terra e o cultiva, tem direitos sobre ela. Isso é verdade para os pequenos produtores, que tem até 100 hectares de terra. Mas o mesmo princípio é usado para produtores com centenas de hectares, o que não é o mesmo caso. No Rio Grande do Sul, por exemplo, há aproximadamente 7 milhões de hectares cercados, cujos “donos” não têm documentos legais. Em Minas Gerais, esse número salta para 9 milhões de hectares.
O Estatuto da Terra diz que é crime se apossar de terras públicas. A pena prevista é de três anos de reclusão. É por isso que o agronegócio investe maciçamente em propaganda nos órgãos de comunicação, pois sabe que tem os “pés de barro” por não possuir amparo legal. Assim, usa a violência para que a sociedade civil não se posicione contra o uso que faz da terra.
IHU On-Line – Quais seriam as principais mudanças trazidas para a agricultura brasileira se a propriedade da terra fosse limitada?
Ariovaldo Umbelino – Não aconteceria nada. A maioria da terra seria posta para produzir. Se olharmos o cadastro do Incra, com os índices de produtividade de 1975, há 120 milhões de hectares improdutivos das grandes propriedades, fato declarado por aqueles que se dizem seus donos. É uma mentira continuar dizendo que a terra no Brasil é produtiva. Para começar a desvelar essa mentira, é preciso lembrar que, se somarmos toda a área com plantio agrícola, ela não chega a 70 milhões de hectares. O Brasil tem 850 milhões de hectares! O Incra sabe disso e não faz nada. A Justiça sabe disso e não faz nada.
Vejamos o que ocorreu há dois anos relativo à ocupação do MST na Fazenda Cutrale, no interior de São Paulo. A mídia disse que o MST invadiu e destruiu a propriedade privada da Cutrale. A Cutrale comprou aquelas terras sabendo que eram griladas, da União. Mesmo assim, adquiriu-as e nelas plantou as laranjeiras. É um desrespeito sucessivo. A mídia disse que aquela terra era da Cutrale, mas se consultarmos os documentos veremos que isso não é verdade. A Cutrale comprou documentos falsos, o que a justiça de São Paulo já apurou. Ocorre que há uma obsessão tamanha entre os proprietários da terra, que eles acham que podem passar por cima da justiça e da legislação. Por isso, foi feito aquilo tudo. A mídia foi bem paga para falar o que falou sobre o casoCutrale. A sociedade foi enganada.
A terra está em processo na União, e o Incra vai fazer assentamento de reforma agrária. Sabendo que irá perder a terra, a Cutrale mandou negociadores para o Incra a fim de comprar a terra em outro lugar e ficar com aquela terra do Estado. É como se a legislação brasileira permitisse que uma terra pública pudesse passar para o poder de um cidadão ou empresa. A legislação brasileira é clara: aquela é uma terra pública destinada para a reforma agrária.
Então, se limitar a propriedade da terra, num primeiro momento, nada irá acontecer, porque as grandes propriedades não são produtivas. No Brasil as propriedades produtivas são as médias e pequenas. A média propriedade está protegida pela legislação brasileira e não pode ser desapropriada desde que o proprietário não tenha mais do que uma. Já os produtores grandes se escondem atrás da produtividade dos grandes e pequenos.
| “A mídia foi bem paga para falar o que falou sobre o caso Cutrale. A sociedade foi enganada” |
IHU On-Line – Como o governo Dilma irá lidar com a questão da reforma agrária e da limitação da propriedade da terra?
Ariovaldo Umbelino – Como ocorreram mudanças no Ministério do Desenvolvimento Agrário, espero que o novo ministro, imbuído do espírito patriótico, que todo ministro quando assume jura ter, comece a fazer aquilo o que o ex-ministro não fez. Guilherme Cassel, antes de sair, divulgou dados dizendo que havia acontecido reforma agrária no país. Não é verdade. Nos oito anos deLula, o Incra assentou 200 mil famílias, e divulga um número de 600 a 700 mil famílias assentadas. Isso é mentira. Esses dados divulgados referem-se à relação de beneficiários emitida. O Incra emite uma relação de beneficiários para uma família assentada nova, mas também emite essa relação para reconhecer assentamentos antigos. Isso tudo é contado como se fosse assentamento novo, o que não é verdade. Nos dois mandatos de Lula, não foi feita reforma agrária, e o que é pior: de 2008 para cá, passou-se a fazer a contrarreforma agrária, que é o programaAmazônia Legal. Esse programa destina terra do Incra para grileiros através de Medidas Provisórias 422 e458. O Incra tem 67 milhões e 800 mil hectares de terra na Amazônia Legal, e essas terras vão ser destinadas a grileiros através do programa que o senhor Guilherme Cassel fez.
Na realidade, o primeiro mandato de Lula teve reforma agrária, enquanto no segundo isso não ocorreu. Espero que o novo ministro cesse esse programa, porque são terras da reforma agrária sendo destinadas a grileiros. Como sou um brasileiro esperançoso, espero que o novo governo cumpra a lei e respeite-a, porque se não nós teremos que ir atrás do Ministério Público para fazer o Estado brasileiro cumprir as leis. Temos que continuar a fazer estudos e mostrar todas essas mazelas. É preciso que a nova presidente que acaba de assumir tenha consciência disso, e não caia nas mentiras que muitos ministros levam, como foi o caso do Cassel.
| “É preciso parar com essa campanha ideológica de que o agronegócio não usa trabalho escravo, que cumpre as leis brasileiras” |
IHU On-Line – E quais são as perspectivas para ademarcação de terras indígenas e quilombolas no governo que se inicia?
Ariovaldo Umbelino – O governo eleito democraticamente deve fazer cumprir a Constituição. Quando se toma posse faz-se um juramento. Demarcar terras indígenas, portanto, é obrigação do presidente da República, através do órgão competente, que é a Funai. Se esta não o faz, cabe ao Ministério Público agir para que o presidente da Funai cumpra. Se mesmo assim a Funai não cumprir, é a hora do presidente da República entrar em ação. E se nem o presidente tomar atitude, deve ser pedido o impeachment dos dois cargos. Esse é o procedimento legal. O mesmo vale para as terras de remanescentes de quilombos. No Brasil, no entanto, parece que isso que estou falando faz parte de um discurso vindo do planeta Marte. É como se a Constituição brasileira não existisse. Parece que vivemos num país sem lei. É preciso ter clareza de que não haverá paz no campo no Brasil enquanto o Estado brasileiro, através dos seus órgãos competentes, não assumir o controle do território e o controle da propriedade privada da terra. Se isso não acontecer, prevalece o desmando, a ilegalidade, que vai aparecer como sendo legalidade. O agronegócio é hábil ideologicamente. Faz propaganda para enganar e encobrir que atua na ilegalidade. É isso que o novo governo precisa encarar.
IHU On-Line – Hoje há um clamor entre os arrozeiros do RS de que estes terão suas lavouras inviabilizadas caso o Novo Código Florestal não seja aprovado. Dizem que perderão suas terras e que será impossível produzir. O que esse tipo de discurso demonstra sobre o modo como o agronegócio se relaciona com o meio ambiente e inclusive com a inteligência da população brasileira?
Ariovaldo Umbelino – Diziam a mesma coisa se demarcassem a terra indígena Raposa Serra do Sol. Falava-se que iria faltar arroz em Roraima. Faltou? Não... Essa é a falácia do discurso do agronegócio, seja entre os arrozeiros ou no setor sucroenergético. A cana-de-açúcar é plantada no Brasil desde o período colonial, nas áreas mais pobres de nosso país. No entanto, quer-se vender a imagem de que são áreas ricas. A Zona da Mata, no Nordeste, é uma das que continuam tendo problema de fome. Na realidade, é preciso investir contra esse discurso falacioso do agronegócio, de que ele é a coisa mais produtiva e moderna do país. Claro que há modernidade e mecanização, mas não em seu todo. Há também barbárie, algo que deve ser dito com todas as letras.
Por: Márcia Junges
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=39669 |