Próprio punho

Relato de viagem - para Luiz

Nas águas do Aripuanã


No segundo semestre de 2008 fizemos uma vistoria de campo em Aripuanã, para atender ao pleito de  um grupo de seringueiros, muitos deles nascidos em Cuiabá e cidades vizinhas, alguns dos quais primos de Rondon, segundo os mesmos, que migraram para Aripuanã na década de 1960. Descemos o rio Aripuanã e, claro, como era de se esperar, fomos registrando parte da história passada daquelas pessoas. Locais de moradia, antigas estradas de seringa, varadouros e até a técnica de cortar a seringueira. O corte da escola cuiabana adotado nesta região, muito diferente da amazonense, é marca registrada naquelas seringueiras, testemunhas da história.
Descemos o rio num barco equipado com um motor rabeta.  Motores como esse, como se sabe, são muito, muito barulhentos, mas muito econômicos também. Nosso destino final era a Terra Indígena Arara, na verdade a estrada de terra que vai desta terra até o município de Aripuanã, num percurso que compreendia em parte a área pleitada pelos seringueiros para sua posse permanente, após décadas desalojados. Na longa viagem, a história de vida dos seringueiros e as violências a que foram submetidos num tempo onde os seringalistas chicoteavam com arame de cerca as costas dos trabalhadores "menos produtivos", onde o aviamento era a única maneira possível de escoar a produção florestal sem, contudo, garantir dignidade às famílias dentro da mata e, onde, depois de tantos anos mata adentro, foram expulsos para dar lugar a uma nova matriz colonial capitalista - a prodigiosa exploração madeireira descontrolada e a pecuária extensiva. O conflito com os povos originários também tomou grande parte da narrativa rio abaixo.
Chegamos à boca do rio Branco, afluente da margem esquerda do Aripuanã, já ao anoitecer. O Aripuanã e o Branco, neste época, estavam com leito muito raso e foi preciso arrastar o barco durante todo o trecho entre a boca do Branco e o porto de nosso destino. Apesar dos tropeços, dos esforços exagerados e da água pela cintura, chegamos até o porto, onde um café quente nos aguardava, e o carro para nosso trajeto em terra. Neste momento, me dei conta de que nossos septuagenários parceiros seringueiros estavam bem cansados, mas dispostos ainda. 
Chegara a hora de entrar no carro e, como não cabíamos todos na cabine, prontamente e antes de nos manifestarmos, os velhos companheiros subiram à carroceria, prontos para mais duas horas de açoite e frio na noite amazônica. Claro, não permitimos e nós, "doutores", solicitamos que entrassem no carro e fomos na carroceria. Foi a mais gélida, sacudida e tensa viagem que fiz numa carroceria. 
No vaivém da viagem, e envolto em pensamentos sobre a vida daqueles que nos acompanharam, me dei conta de outras histórias, mais recentes e tão sofridas quanto a dos velhos seringueiros. Acompanhava-nos, na carroceria, um migrante, chegado à vila de Guariba, em Colniza, nos idos de 1990. Seu objetivo era ganhar uma terra para viver e plantar. Nessa odisséia, trabalhou na abertura de fazendas e detalhou-nos sua história pelas bandas dos rios Roosevelt e Guariba. Numa das aberturas que fazia, precisou dormir muitos dias dentro da mata. Usando o mesmo cobertor e rede durante dias, num clima extemamente úmido, com chuvas diárias, certa vez percebeu algo em seu cobertor, quando dormia sob uma lona preta, num abrigo precário - e diga-se de passagem, muito comum - para quem trabalha em fazendas na região. Curioso e apreensivo, iluminou os trapos com uma lanterna e apercebeu-se coberto de larvas de moscas varejeiras que haviam tomado conta de suas vestes. Chorei, mas não deitei lágrima, minha alma contorceu-se e gemeu.
Fazendas e mais fazendas à frente, agora a floresta havia ficado para trás e apenas a pastagem avizinhava a estrada. Aqui estava mais quente. Um pouco a frente, máquinas iluminavam outra parte de mato, descendo a serra. Eram prospecções de minerais, outro recurso muito desejado do subsolo da floresta. Um tempo mais e as luzes da cidade se fizeram aparecer. Entramos na área urbana e um aspecto frio e triste foi se revelando diante de nós, como se estivéssemos saindo de um mundo vivo das histórias de nossos companheiros e entrando numa atordoada realidade de usurpação da natureza, onde as cidades são meros trapos de um sonho de viver bem e de progresso, que entrar na floresta significou e significa para muitos. Chegamos na cidade de Aripuanã, deixamos nossos companheiros em suas casas. De banho tomado, fomos a um restaurante para jantar e lá saciamos nossa sede de civilização com um bom refrigerante e uma pizza, não sabendo dizer se nossos companheiros teriam conforto parecido. 
Naquele dia, e a partir dele, algo passou a acompanhar-me mais profundamente em todas as viagens junto aos povos e comunidades tradicionais em vários locais onde minha parca experiência foi construída: a minha identificação com a humanidade daqueles homens e mulheres, infantes ou senis, suas histórias, tragédias e lutas, sonhos e vidas construídas ou destruídas ao longo do tempo. A Amazônia, agora, pra mim, suas histórias e gentes, está em todo lugar. Minha alma foi lavada no Aripuanã e a lua, a maior e mais bonita de todas que já pude ver em vida, na boca do rio Branco naquele dia, carimbou-me a alma, que ainda geme e se contorce.

Fernando Francisco Xavier é biólogo

Um comentário:

  1. Puta merda! Eu nem me lembrava do camarada que subiu conosco naquela viagem de horror na caçamba da caminhonete, Fernando. Foi dolorido no corpo e na alma. Saimos cheios de hematomas e feridas.
    Mas lembro de ter comentado qualquer coisa sobre uma cena do filme Blade Runner ao nos aproximarmos daquele garimpão industrial de ouro e cobre em plena floresta. Surreal! Tanto quanto a derrocada da cachoeira e das forças do rio para a satisfação daquela loucura.
    Me senti muitíssimo homenageado vendo teu relato. Obrigado, meu grande amigo.

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