‘Em nome da proteção à Amazônia, se ofereceu o Cerrado à devastação’
Após a aprovação de modificações no Código Florestal, biomas como o Cerrado e a Caatinga, além da Amazônia, ficaram ainda mais ameaçados. Nesta entrevista, o geógrafo e professor da Universidade Federal FluminenseCarlos Walter Porto-Gonçalves explica que o agronegócio não é o único modelo possível para a agricultura. Para Porto-Gonçalves, muito mais importante do que discutir um código de florestas é pensar em um código de biodiversidade, que proponha a convivência fraterna os brasileiros e a rica natureza do país.
Para começarmos, quero te pedir uma análise sobre a política que o Brasil tem para o meio ambiente e o modelo de produção que vigora atualmente. Estes dois modelos são compatíveis?
Eu costumo chamar atenção que, se tomarmos como referência os últimos 30 ou 40 anos, é exatamente neste período que nós temos o debate sobre a problemática ambiental. E no mesmo período temos, paradoxalmente, o processo mais intenso de devastação que a humanidade já presenciou. Nunca se devastou tanto o meio ambiente, quanto mais se falou em salvá-lo. O Brasil neste caso é emblemático. Por exemplo, no início da década de 60, temos o início da construção de Brasília e aí se abre um conjunto de estradas a partir do Planalto central para ligar todo o país a Brasília, então, há a abertura dos cerrados à exploração. E ao mesmo tempo, com a rodovia Belém-Brasília, que é de 1962, há o avanço, sobretudo, da pecuária sobre a Amazônia. Então, se tomarmos como referência o que significaram para a Amazônia e o Cerrado estes últimos 30 ou 40 anos, já temos uma ideia do profundo processo devastador pelo qual o país passou neste período. E isso exige fatalmente que todos aqueles que estão preocupados com a questão ambiental revejam suas ações, porque a consciência ecológica não tem significado um passo em direção ao compromisso com a superação do problema ecológico. É como se a consciência fosse insuficiente, porque não está se traduzindo em práticas que apontem para uma sociedade mais sustentável, embora o que mais se fale hoje em dia seja exatamente sobre sustentabilidade, mas sem que se discuta quais são as razões para a insustentabilidade. Nos últimos 40 anos nós tivemos um avanço tecnológico no mundo que permitiu o aumento geral da produtividade em 30% em relação ao que se tinha antes, mas na verdade há o aumento do consumo de recursos naturais em 50%. Hoje há informações de que já temos um consumo anual de recursos naturais numa proporção que ultrapassa 30% da capacidade natural que o planeta tem de produzir biomassa anualmente. Estamos sacando em uma conta que não tem fundo. A questão do aquecimento global, do efeito estufa, é fruto do êxito do sistema e não de uma falha do sistema. A própria matriz tecnológica na qual vivemos não foi pensada para se relacionar com o planeta e com a natureza e isso é grave, porque se fosse a falha do sistema, consertaríamos o sistema, mas é o êxito, e precisamos avançar para além dele.
E como o senhor analisa a conjuntura atual para este avanço?
Estamos vivendo um momento extremamente difícil, sobretudo nestes últimos 40 anos. Eu me lembro do Lula em São Bernardo do Campo convocando aquelas assembléias em Vila Euclides com 80 mil operários. Hoje em dia, se você convocar todos os operários daquelas fábricas são muito menos que 80 mil. Além disso, houve o deslocamento de fábricas para outras regiões e com isso tirou-se muito do poder que a própria classe trabalhadora tinha de contestar o capital, até pela sua concentração espacial. Essa reorganização do espaço geográfico mudou a correlação de forças políticas entre o capital e o trabalho a favor do primeiro. E, ao mesmo tempo, há meios poderosíssimos de comunicação conformando as subjetividades. Hoje vemos a crise dos partidos políticos em geral que, de certa forma, estão sendo substituídos pela mídia, que praticamente hoje são os partidos políticos de fato. Na Venezuela, na Bolívia, no Equador, países que de certa forma tem governos que se colocam de alguma maneira, mesmo que com ambigüidades, contra o neoliberalismo, quando se liga a televisão você vê com muita clareza aquilo que no Brasil não aparece de forma tão clara, embora se faça exatamente a mesma coisa. Um autor chamado Félix Guattari costumava dizer que são máquinas de fabricação da subjetividade e têm um poder fantástico. Obviamente que não são unidirecionais, as pessoas não são passivas diante da mídia, mas a mídia tem um poder de pautar a vida cotidiana, de ocupar as casas das pessoas. E estamos vivendo esse momento inclusive de falta de alternativa e de um sistema que ao mesmo tempo está moribundo.
No modelo de produção agrícola hoje existem dois modelos em disputa, o do agronegócio e o da agricultura familiar. O senhor pode caracterizar estes modelos e dizer que implicações têm a utilização de cada um?
O modelo do agronegócio é o dos grandes latifúndios empresariais, de monocultivos de exportação, altamente energívoros, aquívoros, com perdas de solo, contaminação das águas, além de uma poluição invisível, que é uma poluição genética. Tudo isso tem a ver com o mundo do agronegócio, que sabemos que no fundo é capaz de produzir muitos grãos, mas o faz com tamanha concentração de poder, sobretudo poder sobre a terra, que ao mesmo tempo em que produz muitos grãos também produz muitos trabalhadores sem terra. Os trabalhadores sem terra são um produto natural do agronegócio. E o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é uma tentativa de organização de um movimento social que politicamente procura se reapropriar da terra, e no escopo desses movimentos de resistência contra esse modelo tem surgido todo um modelo de agricultura familiar de base camponesa. Esse modelo tem na agroecologia e nas experiências da cultura tradicional camponesa os seus dois grandes pilares. E tende para a policultura, a diversidade de produção, voltado muito mais para o mercado local e regional, ao passo que o outro modelo está operando sempre em termos de mercados globais. Isso configura um debate interessante que está sendo colocado no Brasil, e de que infelizmente a sociedade brasileira tem ficado privada pela mídia do acesso ao contraditório. Até porque quem geralmente financia os jornais nacionais no horário nobre da televisão não é a agricultura familiar nem camponesa, geralmente são as grandes corporações aliadas do agronegócio. Aliás, no site da ABAG - Associação Brasileira do Agribusiness - constam como parceiros dos agronegociantes o Grupo O Estado de São Paulo e Globo de Comunicação, dois dos mais poderosos grupos empresariais ligados aos negócios de mídia. Só isso explica por que num caso como o que envolveu a empresa Cutrale o invasor de terras apareça como vítima e o movimento social que derrubava os monocultivos de laranja para exportação para plantar alimentos e denunciava a invasão de terras aparecesse na televisão como criminoso.
Como é que o senhor avalia a aprovação deste projeto de lei que modifica o Código Florestal?
Falar em código florestal hoje é um retrocesso. Por que não um código de biodiversidade? As oligarquias latifundiárias ligadas ao Cerrado estão muito preocupadas em tirar o Mato Grosso e o Tocantins da Amazônia. Com esses estados não sendo mais compreendidos como áreas de floresta, eles ficariam livres para explorar o Cerrado. É preciso ver o que está por trás da discussão deste código florestal. É interessantíssimo no Brasil como o velho consegue aparecer como novo. No século XVI, o que mais se exportava no mundo era o açúcar. E, ao contrário do que nos ensinaram nas escolas, o açúcar não é matéria prima. A cana de açúcar, sim, é matéria prima, mas o Brasil não exportava cana de açúcar, exportava o açúcar. À época o Brasil, Cuba e o Haiti eram os maiores produtores mundiais de produtos manufaturados com grandes latifúndios modernos empresariais de exportação - plantation. E continuamos a ter rigorosamente a mesma coisa hoje, com a tecnologia de ponta de nossa época, ou seja, com tratores e com computadores que são tão modernos hoje como o eram os engenhos de açúcar àquela época. Então, temos hoje uma pressão para alterar o código de floresta, que eu insisto: é um retrocesso. Porque o Cerrado é uma região extremamente importante, se você olhar o mapa do Brasil você vai ver que as grandes bacias hidrográficas brasileiras têm as suas grandes fontes no Cerrado brasileiro. Quem melhor entendeu isso foi talvez o maior escritor brasileiro de todos os tempos, Guimarães Rosa. Ele dizia que as chapadas são verdadeiras caixas d'água, onde nascem vários rios. Ele era um homem inteligente, deu à sua mais brilhante obra o título Grande Sertão: Veredas - o grande sertão são aquelas chapadas enormes, e as veredas são os fundos dos vales onde vivem os camponeses. Ele conseguiu mergulhar naquela cultura com uma profundidade tal que conseguiu fazer com que ela fosse compreendida em todos os lugares do mundo.
O Código florestal, por ter inclusive essa denominação, acaba escondendo essa falta de atenção com os outros biomas, é isso?
Na verdade acaba sendo uma maneira indireta de você dizer lá fora que você está cuidando das florestas no Brasil. A questão da floresta, em certo sentido, é um dos pontos importantes do debate ambiental global. Mas esse é um dos lados do problema, o outro lado é a erosão genética da biodiversidade que se dá a partir do monocultivo. Esse lado eles não querem falar. Por isso que eles querem discutir o código de floresta e não o código de biodiversidade. De certa forma, em nome da proteção à Amazônia, se ofereceu o Cerrado à devastação e, com isso, nós estamos tendo problemas gravíssimos.
A partir da discussão desse projeto de lei os movimentos têm defendido a manutenção do código florestal de 1965. Qual a sua avaliação sobre essa defesa?
Tem que discutir, mas não é essa a transformação que se quer. Obviamente, se temos um código florestal de 1965, significa dizer que ele não foi pensado nesse novo quadro de debates contemporâneos, então, obviamente, deveria estar sendo discutido. Mas como incorporar a biodiversidade como um valor efetivo para a sociedade? Como fazer uma sociedade se desenvolvendo com a natureza e não contra a natureza? O código está sendo modificado para se ampliar as áreas de devastação, então, lamentavelmente, a defesa do código já mostra a posição que os movimentos sociais estão hoje no Brasil - numa posição defensiva. Eles [os movimentos] não estão sendo capazes de ser propositivos, porque a hegemonia dos setores que ganham dinheiro e acham que o crescimento ilimitado é a verdadeira solução da humanidade, está tão poderosa que consegue propor nessa altura do campeonato essa mudança do código florestal. O Equador é o primeiro país do mundo onde a natureza entra na Constituição como portadora de direitos, porque lá a força dos movimentos sociais conseguiu pautar isso. Em abril, tivemos em Cochabamba, na Bolívia, 35 mil pessoas de 142 países na Primeira Conferência Mundial dos Povos sobre Mudanças Climáticas para discutir não o efeito estufa, o aquecimento global, mas quais são as causas disso. Mas quem ouviu falar pela mídia brasileira que 35 mil pessoas, entre 19 e 22 de abril, se reuniram em Cochabamba para se discutir uma alternativa ao que havia sido discutido lá em Copenhagen? A mídia brasileira não divulgou. Eu estive lá e fiquei maravilhado com a qualidade do debate e com as questões que foram levantadas, inclusive, a proposta de uma Declaração Universal dos Direitos da Madre Terra que deverá abrir espaço para criação de um Tribunal Mundial de Justiça Ambiental que puna os crimes contra a natureza. Está sendo encaminhado um Referendum Mundial sobre o aquecimento global e creio que essa questão se torna um tema comum a todos os movimentos sociais que lutam pela reapropriação social da natureza. Essa é a questão de fundo: afinal, o capitalismo expulsa os camponeses e os povos originários da terra e os transforma em dependentes do salário e do dinheiro para viver, assim como usa a terra para fazer negócio. Trata-se de nos reapropriarmos socialmente da natureza e tecermos novos horizontes de sentido para a vida. Eis o espírito de Cochabamba.
Entrevista realizada por Raquel Júnia em julho de 2010.
(Fonte: http://www.epsjv.fiocruz.br/index.php?Area=Entrevista&Num=14)
Para começarmos, quero te pedir uma análise sobre a política que o Brasil tem para o meio ambiente e o modelo de produção que vigora atualmente. Estes dois modelos são compatíveis?
Eu costumo chamar atenção que, se tomarmos como referência os últimos 30 ou 40 anos, é exatamente neste período que nós temos o debate sobre a problemática ambiental. E no mesmo período temos, paradoxalmente, o processo mais intenso de devastação que a humanidade já presenciou. Nunca se devastou tanto o meio ambiente, quanto mais se falou em salvá-lo. O Brasil neste caso é emblemático. Por exemplo, no início da década de 60, temos o início da construção de Brasília e aí se abre um conjunto de estradas a partir do Planalto central para ligar todo o país a Brasília, então, há a abertura dos cerrados à exploração. E ao mesmo tempo, com a rodovia Belém-Brasília, que é de 1962, há o avanço, sobretudo, da pecuária sobre a Amazônia. Então, se tomarmos como referência o que significaram para a Amazônia e o Cerrado estes últimos 30 ou 40 anos, já temos uma ideia do profundo processo devastador pelo qual o país passou neste período. E isso exige fatalmente que todos aqueles que estão preocupados com a questão ambiental revejam suas ações, porque a consciência ecológica não tem significado um passo em direção ao compromisso com a superação do problema ecológico. É como se a consciência fosse insuficiente, porque não está se traduzindo em práticas que apontem para uma sociedade mais sustentável, embora o que mais se fale hoje em dia seja exatamente sobre sustentabilidade, mas sem que se discuta quais são as razões para a insustentabilidade. Nos últimos 40 anos nós tivemos um avanço tecnológico no mundo que permitiu o aumento geral da produtividade em 30% em relação ao que se tinha antes, mas na verdade há o aumento do consumo de recursos naturais em 50%. Hoje há informações de que já temos um consumo anual de recursos naturais numa proporção que ultrapassa 30% da capacidade natural que o planeta tem de produzir biomassa anualmente. Estamos sacando em uma conta que não tem fundo. A questão do aquecimento global, do efeito estufa, é fruto do êxito do sistema e não de uma falha do sistema. A própria matriz tecnológica na qual vivemos não foi pensada para se relacionar com o planeta e com a natureza e isso é grave, porque se fosse a falha do sistema, consertaríamos o sistema, mas é o êxito, e precisamos avançar para além dele.
E como o senhor analisa a conjuntura atual para este avanço?
Estamos vivendo um momento extremamente difícil, sobretudo nestes últimos 40 anos. Eu me lembro do Lula em São Bernardo do Campo convocando aquelas assembléias em Vila Euclides com 80 mil operários. Hoje em dia, se você convocar todos os operários daquelas fábricas são muito menos que 80 mil. Além disso, houve o deslocamento de fábricas para outras regiões e com isso tirou-se muito do poder que a própria classe trabalhadora tinha de contestar o capital, até pela sua concentração espacial. Essa reorganização do espaço geográfico mudou a correlação de forças políticas entre o capital e o trabalho a favor do primeiro. E, ao mesmo tempo, há meios poderosíssimos de comunicação conformando as subjetividades. Hoje vemos a crise dos partidos políticos em geral que, de certa forma, estão sendo substituídos pela mídia, que praticamente hoje são os partidos políticos de fato. Na Venezuela, na Bolívia, no Equador, países que de certa forma tem governos que se colocam de alguma maneira, mesmo que com ambigüidades, contra o neoliberalismo, quando se liga a televisão você vê com muita clareza aquilo que no Brasil não aparece de forma tão clara, embora se faça exatamente a mesma coisa. Um autor chamado Félix Guattari costumava dizer que são máquinas de fabricação da subjetividade e têm um poder fantástico. Obviamente que não são unidirecionais, as pessoas não são passivas diante da mídia, mas a mídia tem um poder de pautar a vida cotidiana, de ocupar as casas das pessoas. E estamos vivendo esse momento inclusive de falta de alternativa e de um sistema que ao mesmo tempo está moribundo.
No modelo de produção agrícola hoje existem dois modelos em disputa, o do agronegócio e o da agricultura familiar. O senhor pode caracterizar estes modelos e dizer que implicações têm a utilização de cada um?
O modelo do agronegócio é o dos grandes latifúndios empresariais, de monocultivos de exportação, altamente energívoros, aquívoros, com perdas de solo, contaminação das águas, além de uma poluição invisível, que é uma poluição genética. Tudo isso tem a ver com o mundo do agronegócio, que sabemos que no fundo é capaz de produzir muitos grãos, mas o faz com tamanha concentração de poder, sobretudo poder sobre a terra, que ao mesmo tempo em que produz muitos grãos também produz muitos trabalhadores sem terra. Os trabalhadores sem terra são um produto natural do agronegócio. E o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é uma tentativa de organização de um movimento social que politicamente procura se reapropriar da terra, e no escopo desses movimentos de resistência contra esse modelo tem surgido todo um modelo de agricultura familiar de base camponesa. Esse modelo tem na agroecologia e nas experiências da cultura tradicional camponesa os seus dois grandes pilares. E tende para a policultura, a diversidade de produção, voltado muito mais para o mercado local e regional, ao passo que o outro modelo está operando sempre em termos de mercados globais. Isso configura um debate interessante que está sendo colocado no Brasil, e de que infelizmente a sociedade brasileira tem ficado privada pela mídia do acesso ao contraditório. Até porque quem geralmente financia os jornais nacionais no horário nobre da televisão não é a agricultura familiar nem camponesa, geralmente são as grandes corporações aliadas do agronegócio. Aliás, no site da ABAG - Associação Brasileira do Agribusiness - constam como parceiros dos agronegociantes o Grupo O Estado de São Paulo e Globo de Comunicação, dois dos mais poderosos grupos empresariais ligados aos negócios de mídia. Só isso explica por que num caso como o que envolveu a empresa Cutrale o invasor de terras apareça como vítima e o movimento social que derrubava os monocultivos de laranja para exportação para plantar alimentos e denunciava a invasão de terras aparecesse na televisão como criminoso.
Como é que o senhor avalia a aprovação deste projeto de lei que modifica o Código Florestal?
Falar em código florestal hoje é um retrocesso. Por que não um código de biodiversidade? As oligarquias latifundiárias ligadas ao Cerrado estão muito preocupadas em tirar o Mato Grosso e o Tocantins da Amazônia. Com esses estados não sendo mais compreendidos como áreas de floresta, eles ficariam livres para explorar o Cerrado. É preciso ver o que está por trás da discussão deste código florestal. É interessantíssimo no Brasil como o velho consegue aparecer como novo. No século XVI, o que mais se exportava no mundo era o açúcar. E, ao contrário do que nos ensinaram nas escolas, o açúcar não é matéria prima. A cana de açúcar, sim, é matéria prima, mas o Brasil não exportava cana de açúcar, exportava o açúcar. À época o Brasil, Cuba e o Haiti eram os maiores produtores mundiais de produtos manufaturados com grandes latifúndios modernos empresariais de exportação - plantation. E continuamos a ter rigorosamente a mesma coisa hoje, com a tecnologia de ponta de nossa época, ou seja, com tratores e com computadores que são tão modernos hoje como o eram os engenhos de açúcar àquela época. Então, temos hoje uma pressão para alterar o código de floresta, que eu insisto: é um retrocesso. Porque o Cerrado é uma região extremamente importante, se você olhar o mapa do Brasil você vai ver que as grandes bacias hidrográficas brasileiras têm as suas grandes fontes no Cerrado brasileiro. Quem melhor entendeu isso foi talvez o maior escritor brasileiro de todos os tempos, Guimarães Rosa. Ele dizia que as chapadas são verdadeiras caixas d'água, onde nascem vários rios. Ele era um homem inteligente, deu à sua mais brilhante obra o título Grande Sertão: Veredas - o grande sertão são aquelas chapadas enormes, e as veredas são os fundos dos vales onde vivem os camponeses. Ele conseguiu mergulhar naquela cultura com uma profundidade tal que conseguiu fazer com que ela fosse compreendida em todos os lugares do mundo.
O Código florestal, por ter inclusive essa denominação, acaba escondendo essa falta de atenção com os outros biomas, é isso?
Na verdade acaba sendo uma maneira indireta de você dizer lá fora que você está cuidando das florestas no Brasil. A questão da floresta, em certo sentido, é um dos pontos importantes do debate ambiental global. Mas esse é um dos lados do problema, o outro lado é a erosão genética da biodiversidade que se dá a partir do monocultivo. Esse lado eles não querem falar. Por isso que eles querem discutir o código de floresta e não o código de biodiversidade. De certa forma, em nome da proteção à Amazônia, se ofereceu o Cerrado à devastação e, com isso, nós estamos tendo problemas gravíssimos.
A partir da discussão desse projeto de lei os movimentos têm defendido a manutenção do código florestal de 1965. Qual a sua avaliação sobre essa defesa?
Tem que discutir, mas não é essa a transformação que se quer. Obviamente, se temos um código florestal de 1965, significa dizer que ele não foi pensado nesse novo quadro de debates contemporâneos, então, obviamente, deveria estar sendo discutido. Mas como incorporar a biodiversidade como um valor efetivo para a sociedade? Como fazer uma sociedade se desenvolvendo com a natureza e não contra a natureza? O código está sendo modificado para se ampliar as áreas de devastação, então, lamentavelmente, a defesa do código já mostra a posição que os movimentos sociais estão hoje no Brasil - numa posição defensiva. Eles [os movimentos] não estão sendo capazes de ser propositivos, porque a hegemonia dos setores que ganham dinheiro e acham que o crescimento ilimitado é a verdadeira solução da humanidade, está tão poderosa que consegue propor nessa altura do campeonato essa mudança do código florestal. O Equador é o primeiro país do mundo onde a natureza entra na Constituição como portadora de direitos, porque lá a força dos movimentos sociais conseguiu pautar isso. Em abril, tivemos em Cochabamba, na Bolívia, 35 mil pessoas de 142 países na Primeira Conferência Mundial dos Povos sobre Mudanças Climáticas para discutir não o efeito estufa, o aquecimento global, mas quais são as causas disso. Mas quem ouviu falar pela mídia brasileira que 35 mil pessoas, entre 19 e 22 de abril, se reuniram em Cochabamba para se discutir uma alternativa ao que havia sido discutido lá em Copenhagen? A mídia brasileira não divulgou. Eu estive lá e fiquei maravilhado com a qualidade do debate e com as questões que foram levantadas, inclusive, a proposta de uma Declaração Universal dos Direitos da Madre Terra que deverá abrir espaço para criação de um Tribunal Mundial de Justiça Ambiental que puna os crimes contra a natureza. Está sendo encaminhado um Referendum Mundial sobre o aquecimento global e creio que essa questão se torna um tema comum a todos os movimentos sociais que lutam pela reapropriação social da natureza. Essa é a questão de fundo: afinal, o capitalismo expulsa os camponeses e os povos originários da terra e os transforma em dependentes do salário e do dinheiro para viver, assim como usa a terra para fazer negócio. Trata-se de nos reapropriarmos socialmente da natureza e tecermos novos horizontes de sentido para a vida. Eis o espírito de Cochabamba.
Entrevista realizada por Raquel Júnia em julho de 2010.
(Fonte: http://www.epsjv.fiocruz.br/index.php?Area=Entrevista&Num=14)
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