O Brazil não conhece o Brasil
Elis Regina sabia muito bem o que dizia quando cantava em tons médios e melodia suave a música de Maurício Tapajós e Aldir Blanc, que empresto como título deste texto. Conhecer este país com um olhar de fora é o que muitos praticamos todos os dias. Os veículos de comunicação, sistemas de ensino, músicas, moda, entre tantos outros mecanismos e processos sociais e culturais, mostram a todos um país tropical muito aquém do que é e do que poderia ser. Uma realidade mascarada sob diversos estigmas e preconceitos, que enxerga o país com um destino predeterminado a ser um celeiro do mundo ou um grande e maravilhoso pote de ouro da Europa e América do Norte, à disposição no fim do arco íris dos recursos naturais planetários. Visão mascarada e estigmatizada porque não deixa enxergar o Brasil em sua diversidade, em sua riqueza cultural e biológica, em sua riqueza de conhecimentos caboclos, religiosa, mítica – ou seja, tudo o que vai além do que contabilizamos em toneladas e cifras.
O Brasil intenso, caboclo, ribeirinho, retireiro, seringueiro, indígena, é um país imensamente rico e diverso e ao mesmo tempo intensamente conflituoso. Conflitos de natureza socioambiental, porque existem no seio dos seres humanos em intensa relação, colaboração e disputa, num ambiente onde a apropriação dos recursos naturais e dos benefícios da biodiversidade se dá de maneira desigual e injusta. A volúpia das toneladas e cifras do agronegócio, frequentemente apontado como nossa avalanca do PIB, esconde a diversidade de realidades existentes no campo brasileiro. A “modernidade no campo”, a “tecnologia da lavoura”, o progresso dos desbravadores do Centro Oeste e Norte do País, etc., etc.
Todo este discurso, se estivéssemos tratando das terras baixas da Amazônia, poderia soar como um clichê academicista. Não obstante, em se tratando de Mato Grosso, poderá soar com grande surpresa. Este estado é visto como um grande detentor de riquezas naturais, como minérios, madeira, solo e água, e sem dúvida o é. Sua fauna e flora exuberante, que conquistaram os grandes filósofos viajantes de séculos atrás ainda atraem o fascínio de todos, em seus três ecossistemas, incansavelmente impressos como cartão postal do estado pelos governos que se seguem.
Ecossistemas indiscutivelmente ricos, biodiversos, belos e repletos de recursos, mas também repletos de uma diversidade de povos e territórios, e por sua vez de conhecimentos e saberes múltiplos. Esta outra riqueza, no entanto, ainda não é conhecida, ou pelo menos pouco conhecida. Não é interessante ser, pelo menos não na visão de latifundiários e grandes negociadores de terras plantadores de commodities. Conhecer e deixar ser conhecida essa realidade é permitir a apreensão de novas visões de mundo, novas visões de natureza, de modos de ser e fazer. É conhecer um outro mundo possível mas, sobretudo, conhecer novas pessoas, novos grupos sociais – novos para nós, obviamente. A situação destes grupos sociais deve ser conhecida e discutida, dando-lhes visibilidade social e condições dignas de existência. Grande parte dos grupos a que me refiro estão – ou foram, ao longo dos anos – sujeitos a situações de vulnerabilidade social, em especial no que diz respeito à política e gestão ambiental. Obviamente se estes grupos são – ou estão – invisíveis é porque há uma racionalidade muito bem arquitetada para tal. Durante o seminário “Territórios e Identidades de Mato Grosso”, realizado em outubro de 2008 por entidades civis e com apoio de órgãos de governo para discutir a visibilidade social dos povos e comunidades tradicionais de Mato Grosso, o sociólogo/antropólogo Antônio João Castrillon convocou uma reflexão acerca da construção histórica da invisibilidade destes povos e comunidades tradicionais, necessária para a ocupação dos considerados espaços vazios, assim denominadas pelos governos militares as extensões de terra de Mato Grosso e outros estados da Amazônia. A construção da invisibilidade dos povos e comunidades tradicionais permitiu a entrada do grande capital na dominação das extensões de terra deste estado. Assim, era preciso “esconder’, “invisibilizar” estes povos e comunidades – indígenas e outros – , considerando Mato Grosso como um imenso território desabitado, pronto a receber as dávidas do desenvolvimento, do desbravamento dos pioneiros sulistas e suas empresas de colonização, da revolução verde, dos tratores Massey Ferguson e das monoculturas. A ocupação destes espaços por grandes fazendas, a instalação de agroindústrias e cidades obrigou a construção de empreendimentos hidrelétricos, sem a consideração de seus impactos sobre o meio ambiente e as comunidades. Ora, se são invisíveis, não há o que atingir. Assim foram várias ações de Estado que culminaram com o desmantelamento de territórios e a fragilização de vários grupos sociais.
No momento atual, no entanto, outra avalanche pode se verter sobre os povos e comunidades tradicionais deste estado, que é a Lei do Zoneamento Socioeconômico Ecológico de Mato Grosso (ZSEEMT). Tal projeto de lei do Executivo Estadual está em discussão na Assembléia Legislativa de Mato Grosso desde o início de 2008. O zoneamento estadual tem por objetivo estruturar uma política geral de ordenamento espacial em Mato Grosso, constituindo um instrumento de planejamento e investimento público estatal a longo prazo que, dentre outras questões, objetiva melhorar a qualidade de vida, promover a cidadania, reduzir as pessoas em condições de vulnerabilidade social, promover o desenvolvimento sustentável da economia, garantir o uso ordenado dos recursos naturais, entre outros.
Tal projeto – o ZSEEMT – está em discussão há duas décadas e sua elaboração incluiu diagnósticos diversos, necessários para alcançar um produto confiável, útil e participativo. O debate atual, no entanto, mais uma vez excluiu os povos e comunidades tradicionais. Mais uma vez sua invisibilidade foi marcada e reforçada. A elaboração do ZSEEMT trouxe um macro diagnóstico socioeconômico e a realidade das comunidades é contemplada neste grande bolo de dados, mas sua especificidade e seus territórios ocupados, reconhecidos ou pleiteados, suas especificidades em relação à educação, saúde, moradia, não se desdobraram em propostas de ação estatal. O Decreto Federal 6.040/2007 estabelece a Política Nacional para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais que, dentre outras questões, objetiva “garantir aos povos e comunidades tradicionais seus territórios, e o acesso aos recursos naturais que tradicionalmente utilizam para sua reprodução física, cultural e econômica”, nas diferentes esferas de governo. Assim, observa-se no ZSEEMT que os territórios tradicionais não possuem diretrizes que garantam sua integridade, regularização ou medidas mitigadoras das situações de vulnerabilidade nas quais estes grupos se encontram. Na penumbra criada, não são reconhecidos, por exemplo, os diferentes matizes de acesso à biodiversidade, os diferentes regimes de propriedade, inclusive a propriedade comunal ainda existente em algumas localidades de Mato Grosso. Ao mesmo tempo em que estas questões não são reconhecidas, também não o são as estratégias de conservação da biodiversidade e os serviços ambientais prestados por estas comunidades.
O mapeamento social realizado no seminário Territórios e Identidades de Mato Grosso fornece farta informação relativa a estes aspectos e revela situações de vulnerabilidade socioambiental dos grupos sociais, que não podem ser ignoradas. Durante o seminário, os representantes dos povos e comunidades tradicionais, agricultores familiares e demais participantes foram solicitados a inscrever nos mapas das regiões de planejamento do ZSEEMT, produzidos pela Secretaria de Planejamento estadual, suas comunidades e os conflitos socioambientais relacionados a elas. Os mapas revelam situações marcantes de violência, ameaças de morte, falta de acesso a água potável, tráfico de drogas e diversas outras situações que uma política de planejamento de longo prazo não pode ignorar. A indicação dos territórios dos povos e comunidades e as reivindicações de seu reconhecimento, por sua vez, trazem à discussão a necessidade de que o Estado de Mato Grosso, em sua política de planejamento territorial, contemple a regularização destes territórios, fato completamente ignorado no atual ZSEEMT. Tais fatos levaram representantes dos povos e comunidades tradicionais participantes do seminário a criar a Rede Mato-grossense de Articulação dos Povos e Comunidades Tradicionais – REMARPCOMTRA –, na qual iniciam uma discussão articulada em nível estadual para debater suas especificidades.
A discussão do ZSEEMT caminha para sua finalização no âmbito da Assembléia Legislativa Estadual. Resta saber se a Casa de Leis minimizará o hiato de ações de estado específicas para estes sujeitos sociais, levando em conta os dados do mapeamento dos conflitos socioambientais, ou se continuará a deixar estes sujeitos no esquecimento, sem construir diretrizes tangíveis para mudar esta realidade na principal política estadual de ordenamento territorial, necessárias ao cumprimento dos objetivos que o próprio ZSEEMT estabelece. O tempo está passando... será que a AL quer conhecer a fundo e intervir na realidade de Mato Grosso, ou continuará a conhecer apenas o Brazil doagrobusiness, das commodities, de toneladas e cifras ao invés do Brasil intenso, caboclo, ribeirinho, retireiro, seringueiro, indígena? Veremos... e cantemos..., com a esperança de mudar o refrão.
Fernando Francisco Xavier
Publicado originalmente na Revista Sina, em setembro de 2009
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